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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014


Quando o homem vira bicho


Era um final de tarde e já havia começado a peleja entre o dia, e a noite que se apressava em tomar seu lugar. No céu, os rasgos do vermelho escarlate simulavam o sangue, resultado de uma batalha da qual já se predizia o vencedor. Foi sob esse cenário que eu passava, despretensioso, pelas imediações de uma feira livre. E, ao acercar-me de uma enorme concha utilizada para a coleta do desperdício de alimentos transformados em lixo, percebi um barulho incomum. A princípio assustei-me. Porém, a curiosidade não me permitiu seguir caminho. Aproximei-me com uma dose de cautela, pois quem estava a  revirar o lixo poderia não ser afeito a intrusos.

 À medida que me aproximava o barulho se tornava mais forte, e acontecia  devido aos movimentos intercalados por curtos intervalos de tempo. Algumas vezes quase imperceptíveis, outras, tão bruscos que me punham de sobressalto. Quanto mais perto eu chegava, mais rápidas eram as batidas do meu coração, meus pelos estavam de pé como os de um gato encurralado. Nesse momento parei um instante e cogitei retroceder.

No entanto, me intrigava o tipo de ruído que provinha daquele entulho. E,  agora, era instigado a descobrir que espécie de animal provocava tal rebuliço. Como era um recipiente relativamente grande, procurei um dos cantos onde os movimentos pareciam menos intensos. Aproximei-me agachado e fui aos poucos elevando o corpo do chão até a borda da lixeira, ainda temeroso. Foi necessário que eu ficasse na ponta dos pés para ver seu interior. Mas, antes que eu pudesse cumprir meu intento de identificar o ser curvado sobre os restos, o vulto voltou-se em minha direção. Senti o sangue esfriar como se congelasse nas veias. Estupefato, impulsionei-me para trás com os olhos cravados no rosto enrugado que mirou-me sobre a borda. “Tá olhando o que moço? Esse lixo já tem dono”. 

A velha senhora falava enquanto mastigava e sumia novamente no monte de dejetos putrefatos. Recobrado do susto, percebi que a fome havia convertido o homem em bicho.



Miguel Cerqueira

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